segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

O urinol de Madame Pompadour


Desde a sua publicação em 02.10.2007, no site de meu amigo Ery Roberto Corrêa, felizardo morador de Curitiba, sempre tive uma vontade louca de publicar integralmente no meu blog esse seu post intitulado O urinol de Madame Pompadour.


Confesso que entre muitos dos meus sites favoritos, que denomino no meu blog como “Fontes de onde bebo”, existem alguns que se eu não consultar umas três ou quatro vezes por dia fico com a impressão que passei boa parte desse período sem respirar. E o site do Ery é um deles e quando tem post novo... ah! aí é sempre uma festa para mim!


Além de excelente escritor, é webdesigner, arte que lhe possibilita brincar com a aparência de seu site, apresentando-o aos seus visitantes sempre com um visual novo e inovador; arte que lhe possibilita construir capas de livros, como a última, do livro de Valter Ferraz, “Capão, outras histórias”, publicado no final do ano passado.


É assim que, lá de Curitiba, sempre me enche de admiração pelas suas criações, seus escritos e principalmente pela sua excelente percepção do que é bonito de se ver, do que é agradável de se ler, do que é interessante de se conhecer, não deixando também de mostrar o seu lado alegre e gozador, brindando-nos amiudamente com fatos e piadas que nos fazem rir gostosamente sem cair nas armadilhas do que é vulgar.


E ontem, munido de uma colossal coragem e vontade de realizar o meu desejo há tanto amordaçado, solicitei-lhe, como de outras vezes anteriores, autorização para publicar esse seu post no meu blog, no que fui prontamente atendido por ele, como sempre de forma prazeirosa e gentil, e com o que, além de enriquecer o meu blog, proporciono um brinde diretamente aos meus visitantes com o que considero uma pérola nacional da Internet.


A partir daqui, tudo pertence a esse post. Vocês vão gostar dele pacas, tenho absoluta convicção!


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Os anjinhos não compõem a imagem original e foram aqui montados apenas para ilustrar.


O saudoso crítico paulista Francisco Luis de Almeida Salles tinha razão quando disse, referindo-se a Olavo Drummond, que "surgiu um contista claro, realista, gracioso, tão mineiro na sua visão das criaturas como a própria humanidade que ele trata nas suas alegrias e tristezas".

Aprendi a gostar do Olavo quando achei seu livro "O vendedor de estrelas" (Editora Arx – São Paulo, 2003, 2ª. edição) na Feira do Livro do ano passado, aqui em Curitiba.

Havia preparado um post sobre um conto engraçadíssimo incluído neste livro, mas descobri uma nota que fazia veemente menção sobre os direitos da obra, cedidos à Editora Siciliano S.A., proibindo reproduções parciais ou totais do conteúdo. Há mais de uma semana enviei um e-mail pedindo permissão para isto, mas não recebi resposta.

Só me restou um caminho: recontar o conto.

Ele é gostoso de se ler porque não dá vontade de parar e contém muito daquela fotografia exuberante feita por Almeida Salles, presente na menção citada. Evidente que o adjetivo gracioso está aqui não apenas em suas significações mais conhecidas de "generosidade" e "graça", mas muito principalmente com o sentido substantivo da comicidade típica do teatro do Século de Ouro espanhol.

Enfim, bom é ler e rir. Pena que certamente não tenha o mesmo efeito recontado por mim. Considerem, porém, meu esforço. Preservarei os nomes de logradouros e personagens e tentarei ser o mais fiel possível ao contexto original. Espero que não me processem. Boa leitura.

O urinol de Madame Pompadour


O ricaço cafeicultor mineiro, coronel Pereirão, tinha recém casado com Ambrosina. Logo nos primórdios da união descobriu que a amada sofria de uma curiosa compulsão. Nem bem havia acabado as sessões de louco amor, a mulher saia em desabalada carreira em direção ao reservado de banhos para se aliviar daquele inapelável ataque diurético.


Um prosaico e sem gosto penico de galalite, onde se lia dupla saudação inscrita em azul – “bom dia” e “boa noite” – na tampa, foi solução nas primeiras semanas. O coronel, tomado de intensa paixão, resolveu dar um fim naquela peça insólita ao decidir decorar a intimidade da consorte apelando para a França. Requisitou um modelo de porcelana de Sévres, com especial requinte, que tornasse a beleza líquida de Ambrosina especialmente decorada.


Se aquela nobre raridade pertencera ou não à Madame Pompadour, era caso de menos importância. O que interessava é que havia saído de um famoso antiquário de Paris e agora estava ali naquele casarão da pequena Serrania, sempre à disposição para socorrer as cada vez maiores esguichadas da doce amante.


Ambrosina ficou encantada com o presente. A peça de Sévres tinha dois anjinhos, em biscuit dourado, enfeitando a alça da tampa. Havia até um certificado, o signatário pouco importava, comprovante da legitimidade do urinol que teria servido aos alívios da favorita de Luiz XV.


A mulher freqüentou tanto aquele vaso portátil que o coronel desfaleceu por não agüentar as avalanches sexuais. Acometido de tísica foi abotoado num pijama de madeira, deixando triste neste mundo a vigorosa viúva.


Ambrosina amadureceu a viuvez cuidando dos anjinhos do urinol como se fosse uma reverência ao falecido. Quando o conforto já se instalava lhe apareceu um terceiro anjinho, só que de carne e osso, na potência dos floridos vinte e poucos anos. O mancebo acabou causando um rebuliço na pequena Serrania. O pretexto inicial de sondar o preço do café da viúva, utilizado por Pedrinho Valente, acabou em nova paixão para a balzaquiana.


A cidadezinha comentava e não entendia a relação. Era estranha aquela trintona experiente passar a perna nas meninas casadoiras assim tão impunemente. Todo mundo queria descobrir o verdadeiro motivo da gamação de Pedrinho por Ambrosina, a misteriosa senhora do casarão. Ele confessou ao padre encarregado de oficiar a união que ela tinha uma orquestra dentro de si.


Pouco tempo e o urinol de Madame Pompadour voltou a receber a líquida descarga de um amor cada vez mais insaciável.


Pedrinho Valente operava transações de café e tinha que viajar para Monte Santo. Ia negociar com o coronel Pedro Paulino. Ainda na estrada foi acometido de uma concreta nostalgia que lhe afligia a alma e corroia o coração. Sua cabeça girava ao relembrar do gozo de Ambrosina que vazava daquelas contorções e gritos frenéticos e depois produzia um estado de voluptuosidade que a levava ao nobre penico. Os tímpanos beiravam ao estouro só de lembrar daqueles jatos maravilhosos retinindo na porcelana da Rive Guache. Tomado de inigualável ardor e já incomodado por interminável ereção, tendo até ensaiado mentalmente um majestoso improviso para recitar à amada, deu meia-volta e retornou para casa.


Lá chegando e indo direto ao palco do desejo deu com uma Ambrosina como que literalmente pega em flagrante, deitada sobre a cama acusadoramente desarrumada, ainda com a respiração arfante e pele suada. Sobre o criado-mudo, ainda não guardado, o "santinho" do alcaide Necésio, propaganda de candidato a deputado. Foi um choque. Pedrinho nem precisou perguntar e Ambrosina já foi explicando:


– Meu amor, ele só veio entregar a propaganda. Quer o meu voto, mas acho que não vou dar. Além do mais ele também é dos tais que prometem tudo, mas na hora da onça beber água escondem o líquido.


Para provar sua verdade picou a propaganda em pedacinhos e destampando o vaso cheio mandou o prefeito boiar aos pedaços lá dentro do urinol. Valente caiu em amargura e adoeceu. Sentindo as dores de uma galhada crescente em sua cabeça não resistiu e, em poucos dias, morreu consumido por cruel decepção.


Acometida de profundo remorso, a insaciável desabou doente. Tempos antes de passar do estado líquido para o gasoso e viajar para o além, foi ao cartório e fez o testamento dos seus bens doando-os à paróquia. Cuidou de separar o urinoir de Pompadeour para presentear Eleutéria, sua honorável amiga, esposa de conhecido boticário. Sem saber do que se tratava o casal adotou a linda relíquia como um enfeite e elegeu a mesa de centro da sala para acolhê-la. Em perfeita disponibilidade à visão das inúmeras visitas que por ali passavam, numa tarde foi vista por um caixeiro viajante, vendedor do sal de frutas Eno, que se encantou com a peça e resolveu fazer oferta irrecusável para levar o achado para São Paulo.


Conta-se que, depois de possivelmente ser arrematada em leilão, a porcelana de Sévres foi vista pela última vez numa mansão do Morumbi, agora servindo como sopeira de jantares festivos.

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I bibida prus músicus!

4 comentários:

Anônimo disse...

Norival, muito obrigado por seu cuidado com meu texto, aqui incluída a exata reprodução, links, e demais detalhamentos. Já estive no site oficial de Resende e feliz pela inclusão lá também. Belo trabalho do amigo. Valeu. Abração.

Anônimo disse...

Norival, meus parabéns pelo seu blog.
Permita-me uma pergunta ao nosso caro Ery: quando vai sair o seu livro? Pode ser uma coletânea, o que acha da idéia?
Grande abraço, Norival.
Adelino

Norival R. Duarte disse...

Obrigado, Ery, pela visita ao meu blog. E a beleza do trabalho pertence inteiramente a você. O que fiz foi uma singela apresentação, em contraposição à grandiosidade dele.
Mas, em todo caso, me considero seu cúmplice, por termos sido postados também no Site Oficial de Resende.

Um grande abraço.

Norival R. Duarte disse...

Obrigado, Adelino, pela visita ao meu blog. E que bom que você tenha gostado dele.

Quanto ao Ery, o danado devia, como você sugeriu, publicar não um, mas pelo menos dois ou três livros com os textos maravilhosos que ele já produziu.

Volte sempre, amigo e um grande abraço para você.